04/Dez/2020
O filme Matrix foi emblemático para trazer de volta para o nosso imaginário coletivo a metáfora da Caverna do Platão. A ideia é que nem tudo o que você vê e imagina como verdade é necessariamente a verdade, e sim apenas um reflexo conveniente e seguro que foi construído para o seu conforto.
Quando crianças fomos preparados a sobreviver nesta situação pelos nossos pais, mesmo porque seria praticamente impossível lidarmos com as incertezas da vida numa fase tão inicial do nosso crescimento. Nossos pais criavam figuras míticas como Papai Noel, Fada dos Dentes e Bicho Papão que serviam de referências e símbolos que conduzissem a comportamentos virtuosos num mundo mais simplificado.
Imaginamos que entrando no mundo adulto isso se cessaria, que passaríamos a seguir a nossa vida com visibilidade plena de tudo o que está acontecendo porque temos senso crítico de perceber todas as imagens míticas criadas.
Vemos filmes como Guerra nas Estrelas e vemos claramente que a "Força" é um poder sobrenatural praticamente religioso que permeia as narrativas contadas. Aí vamos depois assistir uma missa e naturalmente ficamos questionando se as narrativas contadas são da mesma origem do que de um filme ou de uma narrativa contada pelos nossos pais quando criança.
Na realidade o conceito de "verdade" e a certeza de que está com ela é um conceito irrelevante, é apenas uma criação do ego para tentar suportar a narrativa que contamos para nós mesmos. É a nossa segurança de que consigamos justificar todos os nossos comportamentos como sendo racionais.
Tudo o que percebemos em nossa vida chegam através de nossos sentidos pelas limitações dos meios. Quando olhamos para um acontecimento, por exemplo, não vemos todas as perspectivas, mas apenas uma projeção em duas dimensões em nossa retina, e lidamos com o mundo muito bem mesmo com essa informação imperfeita.
Ao longo da vida começamos a perceber erros de paralaxe, coisas que ficam obstruídas por outras, ou outras maneiras de corrigir a informação incompleta se deslocando para uma outra perspectiva, tudo isso para reduzir ao máximo o engano de nossas percepções.
O instrumento da narrativa, entretanto, é uma percepção transportada pela comunicação entre pessoas, podendo ser por voz, audiovisuais ou escritas que são capazes de gerar ainda mais erros que os erros que percebemos na natureza. Esses erros podem ser por deficiência de quem emite, mas mais provavelmente provocada pela visão de mundo interpretada por esta pessoa.
Dado que isso é inerente ao processo de comunicação, o problema passa a saber como lidar com o viés que cada fonte de informação. Como não temos condições de questionar absolutamente tudo o que recebemos, adotamos naturalmente um critério de confiança que simplifica a nossa vida.
A confiança pode vir da autoridade científica, do governo, da percepção do respeito por nossos pares e familiares, ou ainda da percepção de semelhança com nossos princípios e valores.
Numa missa, por exemplo, escutamos narrativas de tempos distantes que buscam criar referências de valores que podemos executar no nosso dia. Mesmo podendo questionar a precisão do relato, conseguimos obter sabedoria através das experiências contadas porque confiamos em quem está emitindo a informação.
O ponto é que precisamos sempre manter um ceticismo sobre tudo o que escutamos. Sabemos que cada um tem um viés e uma busca de uma certa imposição de sua visão de mundo, e que escutar mais de uma fonte e questionar as nossas próprias convicções são as únicas maneiras de crescermos como pessoa.
Da mesma forma que passamos a ignorar respeitosamente as referências ao Papai Noel pelos nossos pais, precisamos também ignorar respeitosamente narrativas de nossos professores, nossos governantes, a mídia, e até nossos colegas de trabalho. As convicções precisam ser nossas para que possamos experimentar cada dia de nossa vida, corrigir quando encontramos uma incoerência, e então crescermos em sabedoria.
Lidar com a nossa condição limitada de entender o mundo, a vida e os nossos pares é da natureza humana. Terminaremos a nossa vida e não teremos totalmente tocado na idealização de uma certeza plena sobre tudo. Tudo é temporário e fazemos apenas castelos de areia na praia.
Enfim... Questione tudo, reconheça e ria das suas visões limitadas e erros, e mantenha uma mente de aprendiz.